sábado, 31 de maio de 2014

Desassossega-me


 
Foto: Andreas Day
 
 

Num poema de inverno

encontro o retrato

abstrato,

sombrio.

Vejo-o na esquina das coisas visíveis,

no contorno

de coisas impercetíveis.

 

Apago-me no papel.

Torno-me tátil.

Sou a libertação

de versos armadilhados

que me deixam

no abismo da Solidão.

 

Rasgo os papeis.

Divido-me em silabas

soadas numa noite qualquer.

Invento coisas comuns

para dizer.

 

Há algo que fica.

Há o grito que não termina.

O espelho não é claro.

Desfoca-me.

 

Traço-te.

Desfaleço no teu sorriso.

Atas-me.

Soltas-me

em linhas indiscretas.

 

Desfaz as minhas palavras.

Devora-me.

Enreda-me na teia

sem voz.

Delira.

Cai na armadilha.

Sê meu.

Desassossega-me

(outra vez).

sábado, 24 de maio de 2014

Pauta do Amor

                            

Foto: Marta Ferreira
 
 
Esticas o braço.

Prolongo-te com a mão.

Estendo o arco.

Faço vibrar o que existe no teu corpo.

Fragmento-te.

 

Entre (a)braços

quebram-se os silêncios.

No contacto com o meu corpo

a poesia transforma-se em canção.

A melodia (que me deixa)

nua,

faz-me tua

com paixão.

 

Somos um.

Sem dó.

Fecho os olhos.

Sei onde estás.

Somos o encaixe perfeito

entre as pernas e o peito.

 

Dissolvo-me em viagens auditivas.

Cubro-me com as tuas

marcas sensitivas.

Perpetuo-me.

 

Ocultas-me atrás do véu

da paixão.

Fico atrás de ti.

Possuo-te lentamente.

Desvendo-te.

 

Sou a lua cheia.

Sou o centro do universo.

Apagas as palavras.

Falamos línguas no reverso

da boca.

 

Adivinho o teu desejo

que fica no espasmo

do que toco.

 

Fecho os olhos.

Perco a visão.

Resta-me apenas a audição.

Reescrevo o teu eco

num delírio enfeitiçado

nas pautas do Amor.

sábado, 17 de maio de 2014

A Química

 
 
Num tubo de ensaio

bem esterilizado

coloco o Amor que é um bom solvente.

Junto apenas o que a Alma sente.

Esta experiência irá servir para quem?

Nem eu sei bem.

 

Não se procura densidade.

Não se procura afastamento.

Tem de haver é Liberdade

para ter.

Temos em mãos um solvente

que dissolve quase tudo.

Até o que não se consegue ver.

 

Neste caso não usamos a ampulheta

para medir o tempo de reacção.

basta contar rapidamente

os batimentos do coração.

Sobe a temperatura.

É o ponto de ebulição.

Tem cuidado que está quente.

Pode haver uma explosão.

 

Misturamos bem o solvente e o soluto.

Obtemos a homogeneidade.

A pura solução.

Não se pode separar.

É o que diz a Lei da União.

Não há, dizem, regra sem exceção.

 

Quando a temperatura desce

e fica á temperatura ambiente,

tudo se destila.

Fica tudo separado novamente.

Resulta o absinto

no fundo do tubo.

retiro um pouco com a pipeta.

Não irei provar como a Julieta

ou como o Romeu.

Não me recordo quem o bebeu.

 

Fica a amostra.

Fica registado

que o Amor se não for bem cuidado

pode levar a um mau resultado.

No Amor basta ter um tubo de ensaio

e ir experimentando para não ficar Só.

Bem dizem que o Amor utiliza a Química

que existe em Nós.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Morre dentro de mim


 
 
Foto: João Bordalo Malta
 
 
 
Pé ante pé,

silenciosamente,

bates à porta.

Sobressaltas o meu corpo.

Sei que não estou morta.

 

Sentas-te ao piano

e tocas uma melodia.

Nada sei escrever.

Tu és apenas poesia.

Rodopio, meu amor,

por ti,

na simplicidade do que vês.

Apenas com um vestido

que encobre a nudez.

 

Lancetas-me a voz.

Soa o eco do silêncio.

Beijas-me a boca.

Não sei se é real ou se estou louca.

 

Não recolhas o que resta.

Pode ser que a noite não passe.

Prende-me.

Deixa-me lá no fundo.

Enterra-te e faz-me defunto.

Apenas dá-me um ultimo sopro.

Faz o que quiseres com o meu corpo.

Exaltarei no fim.

Corta-me a respiração.

 

Ficam as estrelas caídas

no meu cabelo apanhado.

São recolhidas no teu colo,

meu leitor apaixonado.

É assim que o poeta faz.

Permite-lhe partir com alguma Paz.

 

Rasgo-me.

A (rrisco) tudo o que sou.

São esses laços invisíveis

que deixam os sonhos visíveis.

 

Danço contigo.

Sei que o mundo é seguro,

quando me encontro no escuro

encostada à tua distância.

Sinto-te.

O Poema é o Fim.

Morre, agora, dentro de mim.