sábado, 29 de outubro de 2016

A Finada




Já não há leitores.

Há nudez.

Há quem veja com as mãos;

quem leia com os dedos.

quem fale gestualmente.

As mãos andam nuas.



A poesia é coisa pouca.

Tenho as mãos vazias

na banalidade

da explosão líquida

que ocorre na ruína

do meu corpo.



Os poetas não servem para nada.

Há sempre um mau caminho

para percorrer.

Húmido.

Sem norte.

Deixa-te quente

e leva-te para a frente.





Os poetas deviam encher páginas.

Não deviam deixar vazios.

As pernas abertas

são pontas de estrelas

caídas no vazio

do quarto

crescente.



Que morra a prosa.

Se desejas algo,

estás morto por algo.

O desejo é poesia

que te leva do caixão

à cova.

Morreste?

Uma ova!



Não te escrevo

uma prosa.

Enterra-te.

Deixo-te a rosa.



Fina-se a poesia.

domingo, 23 de outubro de 2016

Urgência




Tenho o meu corpo solto

numa cama encalhada

e as unhas cravadas no algodão..



Há urgência.



Abres-(me)

a janela,

fazendo-a ranger de

arrepios.


Há urgência.



Dava-te um terço

para que pudesses desvendar

todos os mistérios.

Assim renovarias

não promessas,

mas certezas

nos ais a Deus.



Há urgência.



No hall celestial

cortas a carne com

intenso prazer erótico.

Rasgas virgindades.



Há urgência.



Há a fome antiga de água.

As árvores escondem-se

debaixo do chão.

Deixa-me regá-las

com urgência.

domingo, 16 de outubro de 2016

Posso fazer algo por ti?


 


A janela abre-se sobre a rua

e antes da nudez consomada

já me vês nua.



Posso fazer algo por ti?



Pisa-me que eu deixo

que faças as tuas marcas.

É uma batalha perdida.

Tenho a mão na faca.



Posso fazer algo por ti?



A carne dissolvida

na saliva.

Não o calo

e não dorme o falo.

Selo de joelhos a intimidade.



Posso fazer algo por ti?



 Respiro para que não doa.

Onde acaba a roupa e

começa a pele,

para pontos mais altos

e buracos mortíferos,

algo nos impele.



Posso fazer algo por ti?



Receio como tu

o mutismo.

Não quero agarrar estrelas cadentes.

Não tenho esse desejo.



Posso fazer algo por ti?



A poesia não tem grades

mas doem-me as costas.



Mas, posso fazer algo por ti?

domingo, 9 de outubro de 2016

Queres voar?




Foto: Ruslan Lobanov


Aterro na cama

e não sou um avião.

Deixo a minha consciência

debaixo do colchão.



O corpo olha-te

de lado,

vivo,

afogado na fantasia

diluída na pele.



Trazes a faca

para me esfaqueares.

Cortas-me a cabeça.

Não penso.

Cerra-me os lábios

Com a língua.

Leva as palavras duras

para a rua.

Atira o meu coração

pela janela.

Deixa lá o peso das estrelas.



Habita ,

mortal,

o reverso do que

há em mim.



Queres voar?


domingo, 2 de outubro de 2016

Um homem não é de ferro




Foto: José Lobato


O desejo de tocar-te

faz-me sentir fome.

Nada ocorreu.

Ninguém morreu.



Apenas uma substância

escorre

pela garganta funda.

Coagula-me o pensamento.

Deixo o corpo à solta.

Há a dor de ver a luz.



Ficamos afastados do chão.

Estamos em cima do colchão.

Há o apetite das coisas

que não se veem.



Ejaculo palavras inaudíveis

para os ausentes

mas sem erros.

Quero provocar-te um orgasmo

na descontração

do espaço (jamais)  vazio.



Escreve-me com a língua.

Depois coloca tudo num

parênteses:

o abraço à volta do corpo.



Elevas-te do fundo de mim.

Afinal um homem não

é de ferro.