sábado, 31 de outubro de 2015

A noite não chega


Foto: Morfi Jang & Iwona Aleksandrowicz
 
 
 
Fizeste de mim

Palavra

e por isso,

quiseste-me nua

para me vestir de insónia

e sentir.

 

Enquanto o dia

dormia,

levei o meu corpo

desnudo

à luz do teu auscultar.

 

Levava o ventre inquieto

e a boca com fome.

 

Enlouqueceste-me,

quando soube que

não tinha cura,

com o peito nas tuas mãos.

 

Fitei-te com as cicatrizes

nos olhos

e viste uma beleza

que não há.

 

Perturbaste-me 

com o teu toque

e mergulhamos bem fundo

no inconsciente

da mente.

 

Libertamos o nosso fogo.

O chão ficou em cinza.

A minha voz

ecoou no silêncio

da tua boca.

 

Respiraste o meu grito,

quando me mataste.

 

Agora habito as tuas palavras

todos os dias,

pois uma noite não chega.

domingo, 25 de outubro de 2015

Inutilidade


 
 
Foto: Hamanov Vladimir
 
 
Isto será inútil.

Não cansem os vossos olhos a ler-me.

Para nada serve.
 
 

Por trás do vidro embaciado

existe algo:

uma sujeita com os olhos abertos

para o sono eterno.

 

Reflito, sem pensar,

na janela em movimento

onde um fio de água

estala o vidro na diagonal

e me transforma em bidimensional.

 

A cabeça cai nas mãos.

Perdi a racionalidade.

O corpo morre na sombra

esquecida.

 

Tenho o peito seco,

os braços abertos

para receber as vossas preces

e o coração antónimo.

Já não bate.

 

Fico sob terra,

acima dos comuns mortais.

É inútil a inspiração

da carne

que amamos com o avesso da alma.

 

A folha é estéril.

Continua casta.

A mim só me resta a nudez

das mãos inertes

e uma mancha de tinta.

 

São inúteis as palavras,

neste momento.

sábado, 17 de outubro de 2015

Sem palavras


Foto: Katia Chauseva
 
 
 
Da minha varanda

vejo uma toalha

a baloiçar.

Diz que pode voar

com a língua do vento.

 

Engulo em seco.

Não tenho palavras para vomitar.

 

Tenho a voz mutilada

e o coração é um

nó cego.

 

Tenho uma corda

de insónias

pendurada no pescoço.

Tenho pouco tempo de vida.

 

Felizmente,

o tempo terminará quando

me fizer pó.

 

Corri a mão

e desço as escadas:

ângulos retos tridimensionais.

Falar de nudez

é falar de mãos.

 

O chão estremece

num clarão

a cada passo que dou.

 

Vejo uma cortina de gritos

mudos a meus pés:

a sombra que existe

para quem “é”.

 

Escrevi-te.

Tudo se tornou claro.

 

A toalha continua a baloiçar.

Não voou.

domingo, 11 de outubro de 2015

Provocação


 
 
Foto: Angela Vicedomini
 
 
 
Aviso-vos que este

poema não pode ser lido.

Não é correto

e é algo a evitar.

Por este motivo,

estou a alertar.

 

Por hoje serei um mau caminho.

Arrumo o rosto.

Serei um retrato perdido.

Vazia por dentro.

Viverei deitada

mas não estarei parada.

 

Dispo-me de tempo

e corpo a corpo,

seguimos o ritmo

da melodia sensual

que se acende na minha voz.

O indomável

irrompe das raízes.

 

Palavras brutas,

talhadas em versos delgados,

ornamentados com vogais

simples e claras.

 

Descobre-me por dentro

com a chave que trazes.

 

À luz das velas

seremos devotos em oração.

De olhos fechados

pediremos perdão.

 

De olhos vendados,

atravessamos a vastidão

 que nos separa.

domingo, 4 de outubro de 2015

A luz


 
 
Foto: Palchyk Iuliia
 
Nessas pedras tão finas,

roucas

que quase perderam a voz,

fiz delas um eco

a sós.

 

Fizeram-me

escrever  nas paredes,

mantendo os  olhos fechados

para não olhar

 para os lados.

 

Despiram-me de preconceitos

e vesti-me de clausura.

Fiz-me direita e

comprometida,

ausente de oração.

Olhava pela janela,

com a mão na tentação.

 

Não foi entre o rosário

que descobri os mistérios

de um amor

que vive no sacrário.

 

O meu tronco horizontal

por entre as sombras

fez a luz vacilar,

quando descubro o mundo que

existe para além de mim.

 

Encontram-se águas revoltas

que embatem contra as ruínas.

É esse o prazer de saber

que é das mãos

que vem a luz.

Só existimos depois disso.